(...)
Democracy Now!: Uma cleptocracia? Os ditadores se enriqueceram à custa do empobrecimento do povo?
Kim Ives: Exato. E, depois de 1986 [quando o regime dos Duvalier foi deposto por uma insurreição popular], os EUA se deram conta de que esse modelo estava criando demasiados “Che Guevaras”, demasiadas revoluções, na América Latina, e optaram por estas eleições de fachada para instalar dirigentes presumidamente mais democráticos, mas eram eleições compradas.
O Haiti foi o primeiro país da América Latina que derrotou o esquema eleitoral promovido pelos EUA, ao eleger para a presidência um padre pobre, Jean Bertrand Aristide. Quando tomou posse, em 7 de fevereiro de 1991, Aristide declarou a segunda independência do Haiti, porque o país queria tornar-se independente do domínio dos EUA e da França.
Estes responderam oito meses depois com um golpe de Estado, e o mandaram para o exílio. E assim começou o terremoto político e econômico com epicentro em Washington e Paris, há 24 anos. Assim foi dado o primeiro golpe contra Aristide. Ele foi mantido no exílio por três anos. Foi durante a administração de George H.W. Bush, mas continuou na administração de Bill Clinton.
A propósito, um dos compromissos principais de Aristide ao chegar à presidência foi aumentar o salário mínimo. Na segunda vez em que Aristide foi eleito, em 2004, foi seqüestrado quase de imediato pelas Forças Armadas e de espionagem dos EUA, enviado a uma república centro-africana, onde ficou praticamente preso.
Maxine Waters, congressista de Los Angeles, e Randall Robinson, fundador da organização TransÁfrica, recolheram Aristide na República Centro; de lá foram para a Jamaica e, depois, para a África do Sul, onde ele reside atualmente. Não pode voltar ao Haiti devido à pressão dos EUA. Autoridades da época, como Colin Powell e Condoleezza Rice, afirmaram que Aristide não podia sequer voltar ao hemisfério norte.
No exílio, na África do Sul, o presidente Aristide declarou que quer voltar ao Haiti, e tenho manifestado essa inquietação a várias pessoas no Haiti. Em Washington, o presidente Obama designou imediatamente aos presidentes Clinton e Bush para dirigir o esforço humanitário, afirmando que suas medidas não são partidárias.
Democracy Now!: Então já surge a inquietação a respeito do retorno de Aristide. Os EUA controlam o aeroporto. O presidente Préval cedeu o controle sobre o aeroporto aos EUA. Mas Aristide pediu para regressar. Qual sua opinião da imagem – para não falar dos recursos – dos dois presidentes afirmando que o desastre diminui a diferenças políticas e que é preciso reconstruir o país?
Kim Ives: Bem, é um ponto exato. Ontem estive em frente ao hospital geral, onde vi os horrores, falando com uma multidão na esquina, e surgiu esse mesmo ponto. Porque o presidente Aristide não pode voltar? Ele quer. Assim o disse. Mas o governo não renovou seu passaporte diplomático, que já venceu. Não foi dado a ele um salvo-conduto para voltar ao país.
Se o governo de Barack Obama ou qualquer outro realmente estiver disposto a tomar esta medida – talvez melhor do que todos os C-130 com seus carregamentos, não só de alimentos e ajuda médica, mas também de fuzis -, poderiam mandar um avião à África do Sul buscar Aristide. Seria um gesto que criaria uma onda expansiva, um contra-terremoto de esperança e orgulho popular, que poderia restituir a força moral que o povo precisa para superar esta crise.
Democracy Now!: Para terminar – quem tem o poder aqui? Como o povo está organizado? Nesse aspecto, se coloca constantemente o tema da segurança para justificar que a ajuda fique apenas na área do aeroporto.
Kim Ives: Este é o centro da questão. A segurança é um pretexto. Vemos em todas as partes do Haiti que a população se organiza em comitês populares para limpar, tirar os cadáveres dos escombros, construir acampamentos de refugiados, estabelecer segurança para esse acampamentos. Esta é uma população que é auto-suficiente, e tem sido já faz muitos anos.
Mas não podem sê-lo quando chega um grupo de marines com suas M-16 e começam a gritar com eles. O cenário defronte ao hospitala geral ontem dizia tudo. As pessoas entravam e saiam do hospital para levar comida aos seus ou porque precisavam de assistência, e um grupo de soldados da brigada 82 aerotransportada, colocados em frente ao hospital, gritava em inglês para a multidão. Não sabiam o que faziam, e aumentavam o caos ao invés de diminuí-lo. Teria sido cômico se não fosse trágico.
Não tinham que estar ali. Claro, se houvesse um exército de bandoleiros atacando o povo – o que não é o caso aqui – talvez precisassem trazer esses soldados. Mas agora o povo não precisa de marines, precisa de medicamentos. Esta situação resume o essencial. É o mesmo que fizeram após o furacão Katrina. São as vítimas que dão medo a eles; são “outros”, são os negros que levaram a cabo a única revolução escrava vitoriosa na história. Quem pode inspirar mais pavor a eles?
Democracy Now!: E as organizações comunitárias que existem por aqui?
Kim Ives: Ah, sim, As organizações comunitárias. Eu as vi, numa outra noite, na comunidade de Mattheew 25, onde estava hospedado. Um carregamento de alimentos chegou durante a noite sem aviso prévio. Podia ter ocorrido uma batalha campal. Entretanto, comunicou-se com a organização popular local, Pity Drop, que imediatamente mobilizou seus militantes.
Eles organizaram o local e sua cordão de segurança. Formaram uma fila com as 600 pessoas acampadas no campo de futebol atrás da casa, que também é um hospital, e repartiram a comida de forma ordeira e eqüitativa. Foram completamente capazes. Não precisam dos marines. Não precisam da ONU. Não precisam de nenhuma dessas coisas que a mídia, Hillary Clinton e as autoridades estrangeiras nos asseguram que precisam. Essas são coisas que o povo haitiano pode fazer por si mesmo e esta fazendo para si mesmo.
Fonte: Democracy Now!
Tradução: José Carlos Ruy
Aqui a entrevista na íntegra
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário