13/09/2018

A Peste (Gay) ou: Antes que meu corpo desapareça

Foto aos 18 anos, para retirar a carteira de trabalho, quando saí mundo afora, na luta pela sobrevivência

Tema sugerido pela escritora curadora Márcia Denser, durante a oficina de Escrita Criativa, via Skype, na data de hoje 13/09/2018: A AIDS.

"Quando procuro o que há de fundamental em mim, é o gosto da felicidade que eu encontro" (Albert Camus).


                   No final da década de 70 tivemos a onda da discoteca, quando os corpos carregados de libido e sensualidade rodopiavam inspirados em  John Travolta e Olivia Newton John. Época de repressão,  a liberação do corpo, embora consentida pela ditadura militar, pela repressão e pela censura,  funcionou como válvula de escape que, numa espécie de antropofagia nacional, resultou em Bandas como As Frenéticas, e músicas como Não Existe Pecado ao Sul do Equador, na voz do andrógino e performático Ney Matogrosso.


                   E não existia mesmo pecado ao sul do equador quando veio a bomba: a "Peste Gay,"  para uns, uma conspiração nascida nos laboratórios da  necropolítica com objetivo de diminuir de forma seletiva a população e, para outros, uma espécie de castigo descido dos céus para limpar o mundo, portanto, tempos de rendição, de contenção de corpos e (auto)aprisionamentos: líderes religiosos aproveitaram a deixa para reafirmar seu conservadorismo e encaretar o mundo que, de fato, ficou mais careta por causa do HIV: como que numa forma de afirmação de que o HIV seria um castigo divino,  rezavam noite e dia  pela morte, por AIDS, claro,  de referências do mundo gay, como por exemplo,  Ney Matogrosso e, se não me engano,  de Paulo Ricardo, da Banda RPM, sendo que houve até adesivaço com frases defendendo a assepsia, que deveria ser feita mediante a matança destes artistas.

                         Eu mesmo, quando da notícia na mídia sobre a “Peste Gay,” passei a viver uma  espécie de AIDS psicológica e, agora sei, foi uma entronização de um desejo coletivo: Deus seria, então, uma Entidade higienista, de forma que eu não teria escapatória: tudo me assustava: uma gripe, um resfriado, uma febre, uma íngua, um sapinho na língua: ter como medidas as que eu tinha naquele momento: altura: 1,73 m. Peso: 57 kg. soava como anúncio de morte.

                       Era maio de 1983 quando, com a agravante do porte físico, apareceu na minha perna direita, um furúnculo - pronto, chegou minha vez - de cara procurei um  especialista pneumologia e tisiologia, quando era caso da dermatologia: que nada, deve ser a Peste, pensei.

                        Diante do Doutor Bárbaro(nome fictício), sem submeter-me a qualquer exame clínico, senti-me diante de um tirano qualquer, um delegado de policia numa sessão de tortura, aliás, muitos médios exercem de forma abusiva o poder que tem sobre a vida de quem os procura: isso é mais comum do que imagina nosso senso vulgar. Ele me olhou com seus olhos de Raio X, o que fez-me lembrar da música Hino de Duran, de Chico Buarque, e pregando os olhos no furúnculo, foi taxativo: você está com AIDS e morrerá e terá no máximo 6 meses de vida.

                                                                   O Interrogatório

Ele: você sabe o que aconteceu com o Markito [estilista, amigo de Ney Matogrosso]
Eu: sim
Ele: com você acontecerá  a mesma coisa.
Ele: você é gay desde quando
Eu: como assim?
Ele: quando foi que você ficou pela primeira vez com homem?
Eu: aos 21 anos de idade
(Neste momento vi o médico escrever no meu prontuário: Gay aos 21 anos)
Ele: você estuda?
Eu: sim?
Ele:  onde?
Eu: na PUC-GO, faço Direito.
Ele:  quem são seus colegas de aula?
Eu: pelo que lembro, o João Campos [que depois foi eleito deputado federal pelo PSDB-GO, com votos de cabestro vendidos por lideranças que, de má fé, usam a fé para a consecução de currais lotados de eleitores tratados como se comedores de capim fossem e, claro, vendidos a peso de ouro]...e o John (nome fictício)
Ele: o John é meu filho. Você já transou com ele.
Eu: não. Não transo com todo mundo. Há uns pelos quais não sinto tesão, como por exemplo por seu filho. Além disso, além do sexo, vivo outras duas coisas: espiritualidade e sociabilidade. Sexo com seu filho, não...

Ele: você é parente do governador?

Eu( notei que esta pergunta foi feita por causa do meu sobrenome Ribeiro, uma vez que o governador ou ex-governador era Ary Ribeiro Valadão, biônico, nomeado pela ditadura militar.)
Eu: não. Não sou parente de gente famosa, sou somente eu.
Ele:  sou professor da UFG,  pesquiso a  AIDS, cujo termo correto é SIDA.
Eu (silêncio)
Ele: você aceita ser usado para pesquisa da SIDA?
Eu( com o pensamento no bem da humanidade): sim. Sem problema.
Neste momento observo ele escrever com ar de prazer no meu prontuário: Pesquisar SIDA.

                                               Interrogatório terminado, saí daquele consultório com uma pulga atrás da orelha. Que coisa esquisita, pensei. Como assim. Somente 6 meses de vida? Já que é assim, vou preparar minha despedida: DESmorte in progress:

A primeira coisa que fiz foi dirigir-me ao mais caro salão da cidade e deixar meu cabelo impecável, bem como a uma esteticista, onde fiz uma limpeza de pele: já que eu teria pouco tempo de vida, era momento de deixar para minha mãe, belas fotos: procurei um fotógrafo famoso, se não me engano, de nome José Luiz, que trabalhava no Fujioka: passei toda a manhã no estúdio e, antes que meu corpo desaparecesse,  certeza dada pelo médico,  tirei  fotos encarnando os 7 personagens: antes que meu corpo sumisse, os meus vários tipos como lembrança para minha mãe.

1- Spin Maternal: para esta imagem,  incorporei minha mãe: o Eu solto simples espontâneo e, para melhorar, teve o dedinho do fotógrafo José Luiz, que sugeriu-me levar a mão ao gógo, o que me deixou assim meio Diva...meio  Greta Garbo com a mão no gogó: um gesto sugerido pelo fotógrafo JL....lembro que um irmão querido, quando  viu aquela  imagem,  ficou como que chocado e  comentou: o que meu amigos vão pensar de mim quando chegarem aqui em casa e verem essa sua foto....ficou o dito pelo não dito e, como eu era economicamente independente, passou batido e mantivemos a mesma amizade e admiração que sempre tivemos um pelo outro, mesmo agora, quando o tenho in memoriam.
2- Spin Vegetal: meu pai, o homem sensual,  o selvagem, nesta foto o spin fotógrafo me mandou tirar a roupa, bem como colocar os dois braços sobre o peitoral, não braços cruzados, mas um perto do outro: era meu jovem belo pai O Selvagem....
3- Spin Carrancudo,.,...este tinha ar bárbaro, não no sentido de selvagem mas de tenso: A Morte.
4- Spin Dona de Si, a Imperatriz russa: para esta foto-personagem incorporei a imponente Catarina, a Imperatriz cujo história eu não sabia em detalhes, quer dizer, até hoje não sei se na Rússia existiu tal persona: apenas intui que sim e mandei brasa né...
5- Spin Infante: infantil... a criança que havia ficado para trás: aliás, a única restou, e não no tamanho ampliado e sim em 10 cm x 15 cm, que coloquei numa moldura: e tem gente que quando vê a imagem, vai logo perguntando: ai é quando você era criança, não é....fazer o que senão responder: sim.....rssss
6- Spin Impassível,....também amei esta fotografia em que incorporei a impassibilidade: não tenho mais tais imagens:  crio de manhã e destruo a noite....
7- Spin Luzente: com um discreto sorriso no rosto, o fotógrafo JL fez com que incidisse sobre meu rosto um raio de luz...amei esta foto também...quer dizer, amei todas, embora não eu não tenha sido capaz de preservá-las,

               Terminada a sessão de fotos-personagens,  pedi que JL as emoldurasse e assim foi feito: molduras de 200 cm de altura x 100 cm de largura: agora sei, aquelas fotos para a posterioridade faziam parte do spin in progress. Eu estava muito bem, como geralmente estou bem quando, ao acordar, elaboro-me através da escrita, como eu havia feito naquela manhã de 1983, rito que faz parte da evolução de um personagem que, até hoje, encontra-se em construção ou, como dizem, sob sistema de work in progress:  quanto àquele médico, do alto de sua prepotência, não quero notícias de alguém que viu-me como se eu fosse um vírus e não um personagem:  para ele, eu era um vírus a ser pesquisado...
                     
                           Incomodou-me profundamente o fato daquele médico não ter atentado para o fato de que somos mais do que meros blocos de carne, sangue, ossos: somos personagens, no meu caso tinha um não nome, ou seja, o acróstico SPIN: Sistema Poético Informativo Nato, poético ou patológico, tanto faz: anamnese, autobiopatografia ignorada: aquele médico só conseguia me vir como um vírus mortal.
                           No andar da carruagem, ou seja, no andamento do spin in progress,  entre continuar sendo visto como vírus e personagem, optei por recolher-me, isolar-me do mundo: foi quando fiquei 30 dias sem ir ao trabalho, o que quase me custou uma demissão por justa causa: na verdade foram 70 dias de imersão total em mim mesmo; foram os dias mais felizes da minha vida:  fiquei entregue ao meu personagem: quer dizer, 73 dias, sendo que destes, em 3 fiquei off, desligado, parado, pois eram dias feriados, quando eu não podia escrever.

                               Ao acordar,  mantinha meus olhos fechados esperando esfriar o corpo. Trata-se de um ensinamento do meu pai: cedo ele nos acordava para irmos para a lida na roça, mas sempre recomendava que só colocássemos os pés no chão depois que estivéssemos com o corpo frio. Ele não explicava o porque daquilo mas, tempos atrás, vi que era para evitar choque térmico e, mais recentemente, de forma definitiva, vi que não o problema não era o contato dos pés com o chão e sim a abertura dos olhos, inclusive já fiz várias experiências de, logo ao acordar, colocar os pés no chão e até andar pela casa sem nenhum risco de choque ou morte, desde que, é claro, eu mantenha meus olhos fechados.

 na espera de que o meu corpo se normalizasse, segundo ensinou-me meu pai quando eu, ali por volta dos 5 anos de idade, levantava cedo para trabalhar na roça. Até hoje sigo este ritual sob pena de, sofrer um forte choque ou até morrer, caso eu abra os olhos com o corpo despreparado ou, nas palavras do meu pai, quente, aberto, enfim, tenho que fechar o corpo para poder abrir os olhos até que o corpo se normalize ou, segundo meu pai, esfrie. Ou feche...


                                            Totalmente recluso, deixei de ir para o trabalho e fiz isso não por alguma depressão e sim por causa da relação comigo mesmo através de um personagem acróstico SPIN: na minha solitária elaboração, sem terapeuta por perto e desligado do mundo e do trabalho, vivenciei um processo intenso e inesquecível: de manhã cedo acordava, segui os passos recomentados por meu pai, sendo que, em tal breve hiato, era como se eu fechasse os olhos para ver: vi o universo diante de mim e, ao acordar, sai para a rua para dar visualidade ao que via; Ao final do mês do calendário spin, vi-me diante de uma grande descrição visual sobre a grandeza do cosmos e, vendo que eu estava curado, joguei tudo no lixo e retornei ao trabalho.

                                     Tempos felizes aquele da reclusão:  70 dias úteis de total entrega aos meus sonhos, visões, o que resultaram num mensário que, agora sei, eu deveria ter preservado, embora até o presente momento eu não consiga guardar qualquer coisa que eu faça ou escreva ou faça, sendo isso  até hoje, daí entender que, cada cidade-estado deveria ter, no lugar do Poder Judiciário, de julgar, o Curador, de curar. É que, segundo uma das leis do SPIN, se não podemos curar, não podemos julgar:  quanto ao Dr. Bárbaro, não sei se ele já morreu: quanto a mim, sei que estou vivo....sei que em todas as manhãs, como numa espécie de moto contínuo,  continuo: continuo  a viver a vida ao invés de apenas estar na vida e, pelo menos até a semana passada,  segundo exames clínicos realizados a pedido do Dr. Gentileza (nome fictício), não tenho HIV, aliás, até insisti:
Eu: Doutor, eu não tenho nenhuma doença?
Ele: não.
Eu: nem um calmante você não vai passar prá mim
Ele: não. Segundo seus exames, você está ótimo
Eu(pensando): ah esses médicos com suas eternas certezas....

....... como se diz por ai, vida que segue, onde seguir tem o sentido de continuar ou de moto contínuo: isso...

Autor:

José Carlos Lima


Comentário

Acho que Ney Matogrosso veio como que válvula de escape: a arte auxiliando na nossa travessia


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