26/07/2016

Hospital da Loucura chega ao fim e obras de arte de pacientes artistas são destruídas

Não podemos permitir que a indústria da morte substitua a vida, todos juntos pelo retorno deste projeto de Vitor Pordeus:

Hotel da Loucura chega ao fim com exoneração de idealizador
Secretaria Municipal de Saúde coloca fotógrafo à frente do tratamento de pacientes psiquiátricos; projeto funciona no Instituto Nise da Silveira
Por Thalita Pessoa, em O Globo

RIO — Uma das inscrições nas paredes do terceiro andar da Casa do Sol do Instituto Municipal Nise da Silveira, o antigo Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, avisa: “Ser artista é ser maluco, ser artista é ser louco, ser artista é tudo isso e mais um pouco". Talvez seja essa a razão pela qual o Hotel da Loucura, projeto iniciado em 2012 para tratar, através da arte, pacientes psiquiátricos, e que ocupava quatro enfermarias abandonadas no local, tenha dado tão certo na missão de trazer mais consciência àqueles tachados de “não sãos” (tal como o legado de Nise da Silveira, psiquiatra pioneira na terapia ocupacional), que o descrevem com muito carinho. Pacientes que não falavam nem demonstravam alegria, pontuam os agentes culturais de saúde, colaboradores e os próprios tratados, passaram a se comunicar e a sorrir, o que explica o apreço pelo trabalho desenvolvido desde então, especialmente através do teatro. Um sentimento que, agora, vem indissociável ao de saudade. Isto porque o projeto — assim como as palavras escritas sobre a tinta, a massa corrida e o tijolo das paredes — vai desaparecer. O médico e ator Vitor Pordeus, idealizador do hotel, em decisão conjunta com profissionais envolvidos no projeto, decretou o seu fim dois meses depois de ser exonerado da coordenação do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde, que ele mesmo criara em 2009. O “cortejo final”, ato simbólico que pontua o fim do Hotel da Loucura, ocorreu na quarta-feira passada. Semanas antes, seus participantes já haviam iniciado o desmonte da decoração com pinceladas brancas sobre frases e poemas.
A exoneração de Pordeus ocorreu sem anúncio prévio e gerou comoção entre funcionários e, principalmente, entre os pacientes, levando alguns a entrarem em quadro de pertubação mental. O novo coordenador, Marcelo Gonçalves Moura Valle, é fotógrafo; e, ao se apresentar para a equipe, confessou nada saber sobre o trabalho que vinha sendo executado. A justificativa para a destituição de Pordeus do cargo é o fato de ele estar cursando no Canadá doutorado a convite da Universidade de McGill. Lá, desenvolve projeto na divisão de Psiquiatria Transcultural da Faculdade de Medicina, com base na experiência do Hotel da Loucura.
— Pordeus foi em busca de uma formação que calaria os críticos do seu trabalho, uma vez que, desde o início, se põe em xeque o fato de ele ser médico imunologista e não psiquiatra. Aí chega um cara que é fotógrafo, que não entende nada, que não tem qualquer vínculo com a iniciativa, e a formação deixa de ser um problema. O fim do projeto foi decretado porque não há como continuá-lo desta forma. A má condução deste trabalho pode levar a desdobramentos graves no tratamento psiquiátrico — queixa-se uma agente cultural de saúde que preferiu não ter o nome revelado com medo de represálias.

Desabafo. Inscrições nas paredes com frases, poemas e músicas servem de incentivo à expressão - Guilherme Leporace / Agência O Globo

De fato, em contato com a Secretaria municipal de Saúde, a mesma respondeu, por meio de sua assessoria, que a nomeação de Valle não compromete o projeto. “O Hotel da Loucura é um projeto do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde, cuja coordenação não é uma função médica”, diz, em nota, acrescentando ainda que “não há nenhuma intenção da SMS de descontinuá-lo”. Em outro trecho do texto, afirma que “repudia essa intenção de desconstrução do projeto e reforça que nenhum programa de políticas públicas pode ser vinculado à pessoa de um profissional, mas sim ser tratada de forma institucionalizada”. Uma versão controversa, segundo relatos da equipe envolvida.
— Fomos pegos de surpresa com essa decisão, que aconteceu do dia para a noite. O Vitor tentou diversas vezes conversar com a secretaria, que nunca veio aqui ou demonstrou interesse no nosso trabalho. O que nos causa estranheza também é afirmar que o Vitor está ausente. Só este ano, ele esteve presente em três oportunidades aqui, ficando em períodos de até um mês, interrompendo a formação dele. Fora isso, tínhamos conversas diárias com ele por Skype, nas quais debatíamos tudo. Se empresas possibilitam funcionários trabalharem à distância, porque ele não poderia, sendo que está lá fora, divulgando o Hotel da Loucura? Há o reconhecimento internacional, mas não aqui — questiona Márcia Proença, agente cultural de saúde, que prossegue com as indagações. — Se não querem o Vitor por este motivo, por que não pediram para que ele indicasse alguém para ser nomeado e que tivesse ligação com o projeto?
Miriam Rodrigues Galvão, uma das pacientes atrizes, de 44 anos, entrou em 2012 no Hotel da Loucura e relata inquietude com a destituição daquele que possibilitou a suspensão do tratamento com remédios mais pesados:
— Por que ninguém veio perguntar o que a gente queria? O teatro me ensinou a ter autonomia, a expressar o que eu quero. Antes, eu quebrava tudo, batia, era controlada por remédios. Eu estou sendo forte, desde que tiraram o Vitor, mas às vezes eu penso que não vou aguentar mais de tristeza.
POSSÍVEL BRIGA POLÍTICA
Milton Freire, de 70 anos, é colaborador do Hotel da Loucura há dois anos, tendo sido paciente do hospital psiquiátrico na década de 1960, onde se tratou e foi curado por meio da escrita. Ele foi atendido por Nise da Silveira, com quem também escreveu um livro. E afirma ver um paralelo entre a resistência ao trabalho de Vitor Pordeus e àquela que Nise enfrentou ao propor a terapia ocupacional para o tratamento de pacientes psiquiátricos.
— A proposta da Nise era a de trabalhar o interior do indivíduo, o intrapsíquico. O Vitor trabalha a extroversão. Vi gente que não se manifestava começar a falar. Tive a oportunidade de viajar pelo Brasil e vi a repercussão do trabalho dele em vários núcleos do país. Não há comparação entre a atuação do Vitor e a do novo coordenador, que só vi uma vez — conta.
O ex-coordenador e fundados do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde suspeita de motivação política.
— Quando o novo secretário de Saúde entrou (Daniel Soranz), em 2014, houve um corte de 80% do meu salário. Depois disso, fiquei nove meses sem pagamentos e tentando contatos com a secretaria, sem obter nenhuma resposta. Meses depois, viajei para o Canadá. Então, em maio desde ano, soube da minha exoneração dias depois de publicada, quando uma amiga leu o Diário Oficial. Este é um ataque político, de natureza pessoal, de quem nunca aceitou o nosso projeto — acusa Vitor Pordeus, que explica a preocupação com os rumos do projeto caso o mesmo continuasse. — Prometem que vão preservá-lo, mantê-lo como é, mas já mudaram. Vários pacientes entraram em crise desde o meu afastamento. Falam que eu abandonei o trabalho, mas há um abaixo-assinado pela minha volta entre os pacientes.
Gilson Saldanha, de 63 anos, que já foi interno do instituto de psiquiatria, conta que passou mal quando lhe deram a notícia da exoneração.
— O meu problema de saúde tem muito de fundo emocional. Eu fico até com febre. Quando me falaram, senti até pontada no peito. Fui internado na década de 1980 porque estava descontente com a situação política do país. E agora vejo isso — relata.
Edmar Oliveira, de 26 anos, é ator e produtor cultural, além de atuar como colaborador do projeto há quatro anos. E tece pesadas críticas com relação à decisão:
— O trabalho nunca foi bem acolhido. Todas as informações da assessoria foram levianas e mentirosas, pretendendo desqualificar o Vitor. Tomam decisões na calada da noite e depois querem manipular a opinião pública.
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Dentre as alegações da Secretaria municipal de Saúde consta a acusação de que “o profissional Vitor Pordeus foi exonerado da direção do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde (NCCS), vinculado ao Instituto Municipal Nise da Silveira, por ter se mudado para o Canadá, o que é incompatível com o cargo de confiança que ocupava e que exigia dedicação exclusiva, de 40 horas semanais na unidade. Ele se mudou para outro país sem qualquer pedido oficial para se ausentar do cargo, quebrando, assim, o vínculo com a secretaria”. Pordeus nega.
O Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde continua a existir. O Hotel da Loucura, sem um coordenador que o conheça suficientemente para administrar o projeto, não.

Hotel da Loucura chegou a ocupar quatro enfermarias no Instituto Nise da Silveira - Guilherme Leporace / Agência O Globo

— A proposta da Nise era a de trabalhar o interior do indivíduo, o intrapsíquico. O Vitor trabalha a extroversão. Vi gente que não se manifestava começar a falar. Tive a oportunidade de viajar pelo Brasil e vi a repercussão do trabalho dele em vários núcleos do país. Não há comparação entre a atuação do Vitor e a do novo coordenador, que só vi uma vez — conta.

Frases escritas por usuários que ainda não foram apagadas deverão receber a tinta branca - Guilherme Leporace / Agência O Globo


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