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É uma pena sabermos tão pouco a respeito da nossa própria história. Certos acontecimentos na História do Brasil parecem encobertos por uma espécie de véu responsável por ocultar detalhes e deixar a verdade dos fatos fora de foco.
Eu confesso que foi apenas recentemente que comecei a ter curiosidade a respeito de certos episódios da História do Brasil Colônia. Um incidente que me chamou a atenção em especial foi o notório Massacre dos Tamoios. Eu já havia, é claro, ouvido falar da Confederação dos Tamoios e da mortandade que se seguiu ao levante dos nativos que se uniram para atacar a recém fundada cidade do Rio de Janeiro no século XVI. Mas eu não fazia ideia do tamanho dessa tragédia...
Pensando em escrever um cenário de RPG envolvendo acontecimentos no período, comecei a fazer uma pesquisa mais à fundo que resultou no artigo a seguir. Ao mesmo tempo que é um assunto fascinante, ele não deixa de ser assustador. Ele é um testemunho claro da aterradora violência daquele período. Uma época marcada pela brutalidade, intolerância e horror.
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Era 1567, portugueses e indígenas haviam firmado um delicado acordo intermediado pelos missionários da Companhia de Jesus (jesuítas). Pelo tratado, os nativos não deveriam ser capturados e escravizados pelos homens brancos, não podiam ser forçados a trabalhar em suas lavouras ou perseguidos. As aldeias deveriam ser deixadas em paz, suas mulheres e crianças tratadas com respeito e nenhum homem escravizado. Os jesuítas ansiavam pela catequização, mas os portugueses desejavam riqueza e a maneira mais rápida de desenvolver a colônia era submetendo os nativos ao trabalho.
Com isso em mente, as coisas obviamente não seguiram conforme acordado. Um ano após a assinatura do tratado, havia recomeçado a captura de índios para o trabalho escravo. Os portugueses violavam a trégua com protestos tímidos dos religiosos, ameaçados pelos colonizadores sempre que tentavam interceder.
"Usando os mais requintados processos de crueldade, os portugueses seguem aterrorizando os nativos. Somente em pensar nos castigos inenarráveis que se infligiam aos rebeldes, muitos índios se submetiam ao jugo, vencidos pelo terror” escreveu um observador francês daquela situação.
Na Capitânia de São Vicente, aldeias eram atacadas e desapareciam no turbilhão faminto das chamas. Famílias inteiras eram colocadas em grilhões e forçadas a marchar para os povoados onde seriam apresentados a dura vida de escravidão e abuso. Alguns se defendiam, erguiam lanças e bordunas, mas as armas dos colonizadores falavam mais alto, cuspindo fogo e chumbo.
Os nativos então se reuniram em um Grande Conselho e os líderes das aldeias sentaram em um mesmo círculo para decidir o que fazer. Já que as armas dos invasores eram mais poderosas, teriam de enfrentá-los contando com a única vantagem que dispunham: a maioria. Por fim, os Tamoios resolveram responder à altura, aos ataques dos "peros". Eles iriam à Guerra.
Nessa época os homens do lendário Corsário francês Villegaignon ainda estavam escondidos em São Vicente tentando promover a invasão, mas seus esforços já eram menos expressivos. Com poucos homens, recorriam a uma guerrilha, atacando de surpresa em emboscadas e se embrenhando na mata virgem. Haviam feito acordos com os nativos e já vinham negociando pau brasil em termos amistosos com várias tribos. Os franceses sabiam que não havia como resistir por muito tempo e precisavam desesperadamente da ajuda dos índios. Ofereceram a eles apoio logístico, abastecendo-os com armas e apetrechos para a guerra.
Assim surgiu a Confederação dos Tamoios.
O primeiro enfrentamento em larga escala foi liderado pelo próprio Grande Chefe Tamoio, Aimberê que comandava nada menos que 1500 guerreiros que viajaram em 160 canoas de guerra para o ataque. Tinham arcos longos, tacapes pesados de madeira, bordunas, lanças de arremesso e alguns poucos arcabuzes cedidos pelos aliados. Os guerreiros estavam acostumados às lutas e disputas tribais, muitos deles eram veteranos com experiência em batalha. A surpresa era essencial para que a ofensiva tivesse sucesso, contudo é provável que os portugueses contassem com informantes ou batedores que anteciparam o ataque que viria pela Baia de Guanabara. Com isso, os defensores instalados na recém fundada vila do Rio de Janeiro tiveram tempo de se preparar. Eles instalaram canhões (as temidas bocas de dragão) no alto do forte que se inclinava sobre a faixa da praia. Municiando os obuses com bolas de ferro ou pedras arredondadas, os artilheiros conseguiam afundar várias canoas com um único disparo. Disparavam também fragmentos de ferro fundido, cascalho ou correntes que retalhavam os corpos produzindo ferimentos medonhos.
Dentre a força de ataque tamoio, aqueles que conseguiram desembarcar, chegaram até os portões, escalaram o muro e atacaram os defensores corpo a corpo. Algumas mortes foram provocadas, sobretudo por disparos de setas embebidas em veneno. Mas incapazes de chegar em grande número, estes acabaram dominados. Prevendo a inevitável derrota, Aimberê ordenou que os guerreiros recuassem para a mata. Os portugueses acreditando que haviam afugentado os índios foram em seu encalço, mas os que entraram na floresta, jamais retornaram. Logo perderam o ímpeto da perseguição e voltaram a se entrincheirar no forte onde tinham vantagem.
Um mensageiro foi enviado para informar o fidalgo e Administrador Colonial Mem de Sá do ocorrido. Ele então se deslocou para o Rio de Janeiro conduzindo um carregamento de armas e munições. A pressa era justificável, os Tamoios continuavam a realizar ataques diários, testando as defesas do muro. Se a reserva de pólvora ficasse comprometida, seria questão de tempo até a cidade cair.
O comboio chegou em 18 de janeiro de 1567, e foi saudado pelos defensores do forte, já esgotados pelos sucessivos ataques e perigosamente quase sem recursos. A armada contava com três galeões vindos de Lisboa comandados por Cristóvão de Barros, dois navios de guerra e seis caravelas abarrotadas de pólvora e munição. A primeira ordem de Mem de Sá foi dispor canhões extras nas amuradas, ele mandou guarnecer cada estação com equipes de disparo e instruiu os homens a atirar contra qualquer canoa à caminho da praia. Homens também foram dispostos em posições estratégias de onde podiam alvejar alvos com maior precisão. A medida funcionou e os ataques começaram a cessar.
Dias depois, Estácio de Sá, sobrinho do administrador desembarcou na Baía de Guanabara com cerca de 1.500 soldados e um reforço de Índios Temiminós, que seu aliado Araribóia trouxera do Espírito Santo. Tanto Estácio quanto Mem, conheciam a capacidade de Aimberê e sabiam que se os Tamoios tomassem o forte a cidade cairia em seguida. Um levante era seu maior temor e para enfrentar essa possibilidade, haviam preparado um plano de emergência anos antes, no qual estocaram comida e água potável para um cerco duradouro. Com os reforços os danos causados ao forte foram reparados. Os nativos percebiam que o levante havia perdido sua grande chance de sucesso e muitos desertaram da Confederação.
Foi então o momento do contra-ataque. Estácio liderou as primeiras incursões pela mata e os portugueses tiveram sucesso em destruir aldeias que abasteciam os guerreiros e forneciam abrigo. Os Temiminós eram especialmente violentos, e usavam uma tática dissimulada: se misturavam aos outros nativos, ganhavam sua confiança e os massacravam à noite. Pouco a pouco, eles avançaram e os tamoios embora resistissem não eram páreo para a marcha organizada dos portugueses.
Aimberê, sentindo a gravidade da situação, mandou reunir seu conselho e disse aos franceses para partirem e salvar suas vidas, inclusive seu genro, Ernesto um dos homens de confiança de Vilegagnion. Os aliados se recusaram a partir e decidiram ficar e lutar até a morte. Eles foram abraçados pela tribo e adotados como irmãos de combate.
Por fim, centenas de portugueses e Temiminos, comandados por Araribóia, foram ao encontro dos Tamoios em seu último baluarte de resistência. As embarcações dispararam de longe e arrasaram as paliçadas de defesa. Em resposta, milhares de flechas cruzavam o céu, ao rimbombar dos canhões e tiros de mosquetão. Os combates corpo a corpo foram brutais: espadas estripavam, tacapes arrebentavam crânios e balas varavam os corpos. Nas águas rasas, canoas que transportavam homens viravam e a luta se tornava desesperada a medida que muitos se afogavam. As águas da Guanabara ficaram tingidas de sangue. Na praia, jaziam corpos de índios e portugueses que as ondas teimavam em trazer de volta.
O Padre José de Anchieta na sua “DE GESTIS A MEM DE SÁ”, narrou em tom épico o desenrolar da sangrenta batalha, cantando glórias à vitória portuguesa:
“As hordas selvagens contra-atacam de cima do monte, levantam o grito de guerra que reboa na altura e vibram fremindo os arcos: furor guerreiro os sacode e logo despejam do alto uma chuva de flechas, cobrindo os cumes verdejantes como uma nuvem.
Assim, quando o vento sul flagela, às vezes, os campos, o granizo despoja dos seus belos cachos as vides e denso saltita sobre os tetos tragicamente soando.
Há um frêmito de horror nas matas. Os inimigos resistem com denodo aos assaltantes, rolando pedras enormes, mas aos esquadrões de Cristo nem flechas sem pedras conseguem parar; o soldado, em fileiras cerradas, se arroja teimoso, vence as escarpas, despede certeiro dardos de arremesso. Chegam às mãos: fogem os selvagens. Persegue-o, alcança-o, mete-lhe a espada, vara-lhe o peito. A uns a lança de ponta aguda atravessa a ilharga, abrindo à luz do sol, as profundas cavernas da vida e levando à morte aos membros pela larga ferida.
Outros tombam, fendida a fronte a golpes de espada, a outros trespassa o coração a seta ligeira".
Anchieta não poupa elogios aos soldados da Coroa, enaltecendo o que chama de "gesto heróico", referindo-se ao massacre de mulheres e crianças no incêndio que fez arder 160 aldeias, queimadas à margem da Guanabara. Ele escreve:
“Pelo solo, escorre negro sangue, as matas se encharcam da muita sangueira. Aqui e ali, corpos nus e sem vida jazem nos caminhos e fundos recessos dos bosques”.
Em meio ao massacre atos de vingança se alternam com momentos de piedade. Enquanto alguns soldados matam, estupram e incendeiam indiscriminadamente, outros enojados pelo sangue e morte se colocam de joelhos pedindo a Deus que dê um fim naquele horror. Homens tentam conter o massacre e garantem a fuga das mulheres agarradas aos seus curumins. Mas a essa altura, a "guerra" já saiu do controle e a barbárie assumiu seu lugar, com a mortandade indiscriminada. Tamanha a sede de sangue que até mesmo alguns aliados Temiminós acabam sendo alvejados, mortos e feridos. Os padres que pediam o cessar fogo também eram trespassados.
Enquanto ardem as aldeias, se desfazendo em fumaça, os sobreviventes fogem para o abrigo da floresta com as crianças a segui-los. O horror chega a tal ponto que os próprios pais matam os filhos afogados antes que o choro deles atraia os inimigos.
O terror se estende por dias e dias... uma a uma as aldeias são destruídas e execuções se sucedem, com corpos sendo empilhados em montes que apodrecem cobertos de moscas e fuligem. Os líderes da Confederação são encontrados e suas cabeças cortadas e espetadas em estacas pois "Daquela raça maldita de Tamoios nada haveria de subsistir nas terras conquistadas pelos portugueses".
Os que sobreviveram foram feitos prisioneiros, amarrados e presos com correntes. Eles marcham envergonhados para a vila onde sofreriam mais humilhação e escárnio. Quando não havia mais corda ou corrente, os prisioneiros foram mortos com facas e porretes, para não gastar balas ou pólvora no extermínio.
Na fase final da campanha, os poucos tamoios que ainda lutavam retrocederam para o Morro do Lery, onde hoje fica o Outeiro da Glória. Lá, com a ajuda de trinta franceses ficaram entrincheirados numa fortaleza de madeira conhecida como Biraoaçu-Mirim. Nesse esforço para arrasar o reduto, acredita-se que Estácio de Sá tenha sido ferido. Uma flecha lhe atingiu a face e penetrou no osso. Ele morreria um mês depois em decorrência de uma infecção. A fortaleza não chegou a ser tomada, e sim devastada pelos canhões que transformaram o lugar em uma pilha fumegante de destroços.
Com a vitória conquistada, o Governador Geral, Mem de Sá, resolveu realocar a cidade para um ponto mais protegido e alto para facilitar sua defesa. O ponto escolhido foi o Morro de São Januário, derrubado nos anos 1920, mais para dentro da baía. Ainda assim, a estratégica entrada da baía de Guanabara nunca estaria segura enquanto não se pacificasse a região de Cabo Frio.
Mas esse é outro capítulo sangrento da colonização portuguesa que nós muitas vezes, também ignoramos...
Confederação dos Tamoios: Uma História de Amor e Fúria
Uma História de Amor e Fúria
É o mais surpreendente relato sobre a história do Brasil (sem esconder nada). Mostrando de forma clara que quem está no poder massacra a população sem dó e nem piedade.
Esqueça todas as mentiras lidas nos livros oficiais, pois o sangue de muita gente humilde foi derramado no chão do “gigante pela própria natureza”.
Basta notar que as atrocidades ainda continuam acontecendo, seja em Eldorado dos Carajás ou na Candelária. Somos nós o cidadão comum que sempre perdemos (ou um ente querido ou a própria vida).
No enredo temos o guerreiro tupinambá que tem a sina de sempre lutar e acabar morrendo, mas toda vez que morre assume a forma de um pássaro. Ele é um imortal que atravessa os séculos na busca incessante do grande amor de sua vida Janaína (e cada reencontro se dá num contexto histórico diferente).
Os índios tupinambás viviam no litoral brasileiro, haviam diversas tribos que possuíam uma língua em comum, o tupi. Os tupinambás eram canibais e acreditavam que ao consumir a carne do adversário ganhavam suas habilidades.
Eles participaram da Confederação dos Tamoios, entre 1556 a 1567, lutando contra os colonizadores portugueses. A tribo está entre as várias nações indígenas que foram dizimadas ao entrar em contato com os portugueses.
Bom, deixando o belo relato de amor de lado. O que realmente chamou minha atenção foi o pano de fundo histórico, pois estamos tão acostumados a ver somente animação infantil sendo lançada por aqui. E de repente surgiu esta animação que narra da forma mais fiel que já pude ver a verdadeira história do Brasil.
A trama nos ambienta em alguns períodos distintos. Desde a época da colonização do país, em 1500; passando durante a escravidão, em 1800; ou durante a ditadura militar nos anos 60 e mostrando até a ascenção do crime organizado nas favelas (no início dos anos 80). E partindo pra um futuro apocalíptico distante, em 2096. No Rio de Janeiro aonde haverá guerra pela água (que “talvez” até possa tornar-se realidade).
O roteiro é muito consistente, a animação é rápida, repleta de referências que conhecemos. E os personagens tem um toque de realidade que eu jamais havia visto antes numa produção nacional.
Estamos tão acostumados a prestigiar as produções americanas e nipônicas que desta vez surgiu algo que me deixou perplexo.
A dublagem de Selton Mello, Camila Pitanga e Rodrigo Santoro está sensacional. Os atores já fizeram diversos filmes nacionais e são engajados em divulgar a “cultura” brasileira.
Depois de assistir Uma História de Amor e Fúria não consegui pensar em outra coisa a não ser em seu enredo que destaca as minorias que sempre foram esquecidas (e massacradas através dos anos).
Aqui você verá o mais completo relato do que realmente aconteceu ao nosso povo e isto nunca estará nos livros que lemos.
Um detalhe meio sombrio, que até mesmo fontes "leves" revelam: voltaram apenas 59 homens brancos e alguns índios, todos desfigurados (há relatos de nem mesmo a família os reconhecerem, e vice versa!)
Fica aí uma boa pedida... não que você precise ter material de RPG sabe? mas o conteúdo é interessantíssimo para o conhecimento da época colônia....
Obrigado pelo seu texto. Recontou perfeitamente a história (claro, usar a fantasia e a imaginação são características de escritores talentosos), no meu ponto de vista. Quase pude sentir o cheiro do sangue e da pólvora!
Um abraço!