08/02/2010

A Nós, os antropófagos, e a Semana de 22



Vejo São Paulo como um espaço onde ocorre uma constante tensão entre o velho e o novo.
Na Semana de Arte Moderna de 1922, há 88 anos, num 13 de fevereiro, que estas duas forças se digladiaram.
Esta briga continua até hoje, estando presente na arte, na literatura, na política, etc.
No palco do Teatro Municipal, quem ousou inovar foi criticado, artistas como Villa Lobos foram vaiados pelos conservadores presentes na platéia.
É que até então somente só se aceitava o academicismo, uma arte feita de forma exata, como se fosse fotografia da realidade.
Quando os artistas vieram a público para acabar com o academicismo, sofreram forte resistência por parte do conservadorismo.
Esta luta entre o velho e novo perdura até hoje, sendo que, na política, é desnecssário de dizer que estão no poder aqueles que ousaram inovar na Semana de 22.
Imperdível o texto que segue abaixo, sobre a Semana de Arte de 22.


Mazé Leite *

Em junho de 1556, os índios caetés – que habitavam uma parte do litoral alagoano – fizeram um verdadeiro banquete antropofágico: devoraram o primeiro bispo do Brasil (que era português), dom Pedro Fernandes de Sardinha. Por causa disso, os índios foram dizimados em cinco anos de guerra. “Tupi, or not tupi, that is the question”, diria Oswald de Andrade, 370 anos depois, em seu Manifesto Antropófago.


Em 1913, a Pinacoteca de São Paulo realizou uma Exposição de Arte Francesa, trazendo da Europa exemplares de mobiliário e decoração franceses, além de pinturas, com o intuito de inspirar, na sociedade paulistana, a estética do bom gosto europeu. A elite brasileira fazia questão, desde o século 19, de se manter em conformidade com a cultura europeia, importando os valores estrangeiros. Isso gerava também, é claro, alguns aspectos de distinção de classe, uma vez que não desejava ser confundida com negros, índios, mulatos, mestiços. Mais uma vez Oswald: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”...

Mas o que esses dois fatos têm em comum? Exatamente a Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, que se realizou há exatos 88 anos completados no próximo dia 13 de fevereiro.

A nata da sociedade paulistana que, naquelas três noites, subiu as escadas do Teatro Municipal de São Paulo – vestida rigorosamente à caráter para assistir a apresentações musicais de Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais, conforme dizia um pequeno reclame escondido num canto dos jornais da época – jamais poderia imaginar de que seria, muito à contragosto, testemunha histórica de um momento de virada na vida artística e cultural brasileira. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros jovens artistas brasileiros convencidos de que um salto havia que ser dado – um salto para DENTRO do Brasil, pois os ventos da modernidade forçavam esse salto – chocaram a platéia do teatro lotado, enquanto Ronald de Carvalho declamava em alto e bom som o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, que criticava o gosto da refinada poesia parnasiana:
“Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.”


As linhas neoclássicas dos detalhes arquitetônicos do Teatro Municipal pareciam vir abaixo! Vendo-se pega numa espécie de flagrante, a elite paulistana desabou em uivos, gritos e vaias, e o caos tomou conta da Semana de Arte Moderna de 1922. Nos dias que se seguiram, os jornais registravam aquele evento como uma “verdadeira falta de respeito” à gente tão refinada, à nata da sociedade paulistana! Um bando de rapazes e moças enlouquecidos, recitando poemas sem rima, sem metro, e mostrando pinturas e esculturas que eram um acinte ao gosto neoclássico e parnasiano da época! Um horror! As damas e os cavalheiros de Higienópolis e dos Campos Elíseos tinham sido acintosamente agredidos por aquele bando de loucos futuristas (denominação que se dava aos modernistas na época).

Mas além dos gritos histéricos e dos apupos, as senhoras e os senhores deixaram bilhetes malcriados atrás das pinturas expostas no hall do teatro, incapazes de achar beleza num homem que parecia sofrer do fígado de tão verde, numa tela de Anita Malfatti. Os modernistas haviam conseguido sacudir a modorrenta e provinciana elite de São Paulo, como o desejara Di Cavalcanti, que havia sugerido a Paulo Prado (escritor) a realização de "uma semana de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".

Eram os índios caetés de volta ao palco, sobre os ombros de Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e dos outros! A elite brasileira concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo, vivia sob os eflúvios da vida europeia, sua referência para todos os seus valores. A Europa estava lá para ser imitada e idolatrada! Nada da cultura da gentalha nacional, “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”, diria Oswald de Andrade.

A Semana de Arte Moderna amplificou-se ao longo das décadas, e suas influências se seguiram além das três noitadas caóticas e ruidosas. Teriam feito ruído, os índios, enquanto comiam o bispo? Sua antropofagia alcançou os tempos novos que começavam com o modernismo brasileiro: já que “o de fora” é inevitável e deve ser assimilado, que ele seja primeiro deglutido! Deglutição pós deglutição, nas artes plásticas, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, e depois Portinari, Tarsila do Amaral, Clovis Graciano, Carlos Scliar, Quirino e Hilda Campofiorito, Lívio Abramo – e tantos outros – expressaram em suas obras o efeito colateral da refeição cujo prato era (sempre) o modelo europeu: já que a nova estética exigia novos pincéis e novas formas de pintar, que se pintasse o Brasil. Que se modernizasse o Brasil.

Essa onda modernista alcançava também o outro lado da cidade, a região do Brás e do Cambuci, aonde viviam os operários e os imigrantes pobres, como o pintor Alfredo Volpi. Esses artistas que estavam desse lado da cidade, criaram o chamado Grupo Santa Helena, que era uma comunidade de artistas que se encontravam para trabalhar e aprender juntos num mesmo prédio do centro de São Paulo. Desses modernistas de outro calibre – uma vez que não eram intelectuais como os outros – surgiram pintores como Rebolo, Aldo Bonadei, Clovis Graciano, Mário Zanini, etc, que foram reconhecidos a partir da década de 30.

Hoje, ano 454 da Deglutição do Bispo Sardinha, os efeitos da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 ainda continuam lançando suas questões: como defender a cultura brasileira em meio a um mundo “globalizado”? Como defender as artes plásticas dessa “arte” vazia de sentido e conteúdo, minimalista e cansativa (e já agonizante)? Como argumentar contra o idealismo conceitual que antecede a obra? Como permitir que possibilidades infinitas não sejam subjugadas pela mesmice estética imposta pelo sistema de arte atual? Como vencer o velho problema da falta de espaço para os reclames (e obras de arte) que não sejam os preferidos da mídia? Como continuar engolindo os novos Sardinha e não sofrer de indigestão? Como voltar a meter estribos na burguesiazinha metropolitana?

Oitenta e oito anos depois da eclosão modernista no Brasil, ainda vemos, felizmente, que os componentes e as facetas da realidade são riquíssimos e inumeráveis! À contragosto do atual establishment...

Como bons antropófagos, comamos-lhe!

FONTE:Vermelho
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