Por João Vergílio G. Cuter - no blog do Luis Nassif
Carta a um comuna sobre Battisti
Carta que enviei a meu amigo Patrick (nome de guerra), ex-comuna, grande sujeito, coração enorme, que me escreveu por ocasião de seu 53º aniversário, fazendo uma defesa apaixonada da extradição de Cesare Battisti:
Patrick,
Parabéns, seu comuna de meia tijela. Cinquenta e três? Eu ainda estou curtindo minha “boa idéia” – ou, pelo menos, tive que engolir a dita cuja de um só trago, como se fosse um copo de 51.
Quanto ao Battisti, meu velho, eu não o extraditaria. Seu passado faz parte de um mundo que morreu, e que é impossível julgar com os olhos do presente. Naquele mundo doido, muitas pessoas foram levadas a pensar que qualquer ato (até mesmo um assassinato) estava justificado pelo ideal de uma sociedade igualitária. Uma espécie de loucura coletiva arrastou milhares de jovens às piores barbaridades, mobilizando (aí está o paradoxo) seus melhores sentimentos. Abandonavam a família, os amigos, a carreira em nome de um ideal de justiça. Eram movidos, enfim, por uma lógica que é inatingível pelos raciocínios de hoje. Sempre achei aquilo uma sandice completa, mas reconheço que, naquela época, eu julgava essa sandice com outras lentes. Compreendia quando alguém me falava que havia uma guerra em curso no mundo todo entre o “bem” do socialismo e o “mal” do capitalismo, e que essa guerra às vezes fazia vítimas inocentes. Achava esse raciocínio uma loucura porque não conseguia ver no “socialismo real” (lembra disso?) a mais pálida sombra do ideal que movia pessoas desse tipo, e também porque não acreditava no poder humano de planejar a história, como se fosse um arquiteto. Apesar disso, conseguia me pôr no lugar dessas pessoas, e compreender o ponto de vista ético a partir do qual elas falavam. Hoje, para compreendê-las (e para me compreender, nesse passado) tenho que forçar minha imaginação política a viajar para um tempo que já morreu. Cesare Battisti, a rigor, não pode ser extraditado, pois extraviou-se no tempo. O que existe, hoje, é uma sombra carregando na memória, um pouco incrédulo, a sombra de um mundo extinto. Sem nenhuma comemoração, discretamente, eu o deixaria em paz. Eu estava certo, no final das contas, e ele, errado. E daí? Já não errei tantas vezes, eu também?
Se vivesse no início do século XX, não torceria pela condenação dos feitores que abriam o lombo dos escravos no chicote, por mais que a imaginação da dor me levasse a odiá-los. Tentaria compreender que a página estava virada, e aquele velho derrotado, no banco dos réus, nada tinha a ver com o jovem forte que fazia muitos tremerem à sua passagem. Se algum negro, por vingança, o quisesse assassinar, eu não moveria o dedo mínimo para impedi-lo. Mas não tentaria escrever eu mesmo o último ato da tragédia, introduzindo nela um gran finale. Onde acaba uma pessoa, Patrick? Nos seus pensamentos mais recôndidos? Na última célula do dedão do pé? Ou num ponto indefinido da cultura que a circunda?
- Dov’è Battisti? – Battisti non c’è. È già spinto. Lascialo morire.
Parabéns novamente, seu larápio.
Saudades,
João
FONTE: Blog do Luis Nassif
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Cotidiano/arte. Registro de vida, visões internas, pensamentos e anamneses. Resolver o problema de ANTARES, sigla para Análise das Tarefas da Elaboração SPIN, Sistema Poético Informativo Nato: poético ou patológico, tanto faz....
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