24/01/2010

A grande mídia unida contra a democracia




Por João Brant - Observatório do Direito à Comunicação, na NovaE

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Terceiro ato

As recentes críticas ao texto-base da Conferência Nacional de Cultura são o ápice da farsa (termo talvez mal-apropriado aqui, já que ela nada tem de cômica). O Estado de S. Paulo, O Globo e a Folha de S. Paulo atacaram o texto por ele dizer que “o monopólio dos meios de comunicação representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural”.

A contestação foi à afirmação de que há ocorrência de monopólio nos meios de comunicação no Brasil. O trecho fica mais claro se citada a frase imediatamente anterior: “A produção, difusão e acesso às informações são requisitos básicos para o exercício das liberdades civis, políticas, econômicas, sociais e culturais”. É um texto, portanto, que defende as liberdades, e aponta a concentração nos meios de comunicação como ameaça à democracia e aos direitos humanos. Com ele concordariam até os republicanos dos Estados Unidos, como demonstram recentes votações no Congresso daquele país. Mas não os jornais brasileiros.

É preciso deixar claro que “monopólio” ali é usado em sentido amplo e agregador. Até porque, embora a Constituição Federal (de novo...), em seu artigo 220, proíba a existência de monopólios e oligopólios, nunca houve a regulamentação deste artigo. Portanto o Brasil não tem como estabelecer critérios precisos para determinar se há ou não ocorrência de monopólio neste setor. Qual a referência? A propriedade? O controle? A participação na audiência? A participação no mercado publicitário? Todas as democracias avançadas estabelecem medidas não apenas anti-monopólios e oligopólios, mas anti-concentração, combinando os diferentes critérios citados acima. No Brasil, os únicos limites à concentração existentes foram estabelecidos em 1967 e são mais tênues do que os aplicados nos Estados Unidos, França e Reino Unido. O próprio Estadão já tocou, em editoriais recentes, no problema da concentração no rádio e na TV; agora nega sua existência.

Também não passou despercebida pelos jornais a proposta de regulamentação do artigo 221 da Constituição Federal, que prevê a regionalização da produção de rádio e TV e o estímulo à produção independente. A matéria usa uma declaração completamente equivocada do deputado Miro Teixeira para dizer que o artigo não admite regulamentação. Embora haja pareceres que defendem que o artigo pode ser auto-aplicável, o seu inciso III diz justamente que as rádios e TVs deverão atender ao princípio de “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei”. Isto é, ele não só admite como solicita regulamentação. Bola fora ou má fé?

Outro ponto atacado pelos jornais é o trecho em que o texto defende o fortalecimento das rádios e TVs públicas e sua maior independência em relação aos governos. Diz o texto preparado pelo Ministério da Cultura: “As TVs e rádios públicas são estratégicas para que a população tenha acesso aos bens culturais e ao patrimônio simbólico do país em toda sua diversidade. Para tanto, elas precisam aprofundar a relação com a comunidade, que se traduz no maior controle social sobre sua gestão, no estabelecimento de canais permanentes dedicados à expressão das demandas dos diversos grupos sociais, na adoção de um modelo aberto à participação de produtores independentes e na criação de um sistema de financiamento que articule o compromisso de Municípios, Estados e União”. Assim, o texto defende o controle social sobre as mídias públicas justamente para que estes veículos não sejam apropriados pelos governos. O foco é justamente a defesa da liberdade de expressão para todos e todas. Onde há ataque à mídia? Onde há ameaça à liberdade de expressão?

Dejà vu

Para quem acompanha esse debate, esse comportamento não é novidade, embora o tom raivoso e histérico nunca deixe de assustar. Parte dos meios de comunicação não aceita nenhum tipo de medida que possa diminuir o poder absoluto exercido hoje por eles. Regras que em outros países democráticos são entendidas como condições mínimas para o exercício democrático, aqui são tratadas como ameaças à liberdade de expressão. A grita esconde, na verdade, a defesa de interesses corporativos, em que a liberdade de imprensa se transforma em liberdade de empresa.

A liberdade de expressão defendida por esses setores não é a liberdade ampla, mas a liberdade de poucas famílias. Contra qualquer medida que ameace esse poderio, lança-se o discurso da volta da censura, independentemente de não haver em nenhum desses documentos propostas que prevejam a análise prévia da programação. Independentemente de esses veículos negarem o direito à informação de seus leitores e omitirem informações e opiniões relevantes para a compreensão autônoma dos fatos, agindo de forma censora. Independentemente de os setores proponentes dessas medidas terem sido justamente aqueles que mais lutaram contra a censura estabelecida pela ditadura militar, da qual boa parte desses veículos foi parceira.

Nessa situação, quem deve ficar apreensivo com a reação são os setores que tem apreço à democracia. Como lembra um importante estudioso das políticas de comunicação, foi com este mesmo tom de “ameaça à democracia” que estes jornais prepararam as condições para o acontecimento que marcaria o 1º de abril de 1964. De novo, aqui eles não mostram nenhum apego à Constituição Federal e ao verdadeiro significado da democracia. Obviamente não há hoje condições objetivas e subjetivas para qualquer golpe de Estado, mas os meios de comunicação já deixaram claro de que lado estão.

Aqui o texto na íntegra
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